Crônica: Que sofá, hein, minha filha!

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por Juliana Saad

Eu moro neste apartamento há dez anos e minha mãe veio aqui duas vezes. A primeira visita foi um convite meu, formal, para um jantar só com meus pais. Eu ia cozinhar, ela não podia recusar. A comida não ficou uma maravilha, mas ela não criticou. Sobrevivemos. A segunda visita foi por causa de uma tragédia (calma, nada sério). Faltou luz na casa dela. Mas faltou luz na casa dela no dia do último capítulo de Avenida Brasil, aquela novela que parou o país. A novela que estacionou minha mãe e meu pai diante da televisão de segunda a sábado após o Jornal Nacional fizesse lua cheia ou chovesse canivete. Obcecados por Carminha, Nina e Tufão. Compreendi que estavam mergulhados no vício na noite do aniversário de casamento deles, quando finalmente concordaram em sair para jantar fora e, na hora da novela, apoiaram o celular na garrafa de azeite e compartilharam fones de ouvido enquanto comiam.  

Meses depois, anunciou-se o início da tragédia: no dia do último capítulo, meu pai estaria fora da cidade, a trabalho; seriam obrigados a assistir separados. Foi sofrido aceitar, mas não teve jeito. E a coisa só ia piorar. A tão esperada sexta-feira em que tudo seria revelado, e o vício chegaria ao ápice, amanheceu sem energia. Assim que minha mãe acordou e notou a falta de luz, me ligou: “Tem energia aí? Telefona agora para a Eletropaulo porque tô sem luz”. Telefonei e a gravação avisou: sem previsão. Minha mãe resmungou que tinha muita coisa pra fazer em casa, que a comida ia descongelar, que não dava pra ficar sem televisão e desligou na minha cara. Na sequência, me ligou de hora em hora pedindo para checar. Sem previsão. Sem previsão. Sem previsão. O dia voou sem previsão. Oito horas da noite, meu celular toca pela vigésima vez: “A luz não voltou! O que eu faço? Tá sabendo que hoje é o último capítulo da novela? O ÚLTIMO CAPÍTULO! Não é possível que estão fazendo isso comigo! Sua TV tá funcionando, né? Tô indo praí”. A TV estava em ordem, mas a casa… 

Ninguém pode imaginar o estado em que estava o meu apartamento. Eu tinha tirado a semana para revisitar caixas antigas, mudar coisas de lugar, separar roupas para doação. O caos. E minha mãe estava vindo para cá. Minha mãe é sofisticada, elegante, impecavelmente arrumada, minimalista e chique. A casa dela segue essa mesma linha. E ela se irrita muito porque a filha dela não é assim, então prefere não me visitar. Mas está a caminho. Socorro. Entuchei o caos no quarto de hóspede e fechei a porta. Tranquei a porta e sumi com a chave. A sala ficou até apresentável. Preparei um aperitivo simpático, deixei arrumadas duas lindas xícaras de café que ela me deu, borrifei no ar um cheirinho chiquérrimo que ela me mandou comprar naquela loja caríssima de cama, mesa e banho, liguei a TV e ela chegou. “Bem-vinda, mã…” Entrou como um furacão e se jogou no sofá. Meu Deus. O sofá. “Mãe, viu que apartamento arrumado e cheiroso pra te receber? Quer mais alguma coisa no aperitivo? Quer um vinho? Uma água? Um café agora ou depois?”

Nada a distraiu. “Mas que sofá, hein, minha filha! Como é que você vive com um sofá duro desse jeito? Coisa horrorosa! Olha esse encosto, parece uma parede! Se você queria me quebrar as costas, podia ter me jogado no chão assim que eu entrei; teria sido menos doído do que cair nesse sofá. Vai ser um martírio assistir à minha novela aqui. Não dá nem pra esticar as pernas, nem pra deitar a cabeça. Que tortura!”. Esbocei sugerir que ela usasse as almofadas como encosto, ou que deitasse para o lado, mas não deu tempo de dizer nada: o “oi oi oi” da abertura da novela começou e ela me mandou ficar quieta. “Silêncio. Vou ver minha novela. Amanhã vamos comprar um sofá novo, confortável, decente. Isso aqui não tem cabimento. E liga de novo na Eletropaulo pra saber quando minha luz vai voltar.” Sem previsão.